Toda peça de teatro instaura uma comunidade temporária. Principalmente durante seu processo de criação. Para a peça acontecer é necessário que todo mundo trabalhe em prol do acontecimento. Unifique as agendas. Apazigue os egos. Fluidez e rigor numa dinâmica muito própria. Quando digo comunidade, não estou dizendo que é necessariamente um vínculo pacífico ou uma convivência harmoniosa. Comunidade, pra mim, tem a ver com viver junto, suspender algo da própria vida, colocar as certezas à prova. E também acredito que existam peças que não estão comprometidas com nada disso.
Talvez seja incongruente pensar o temporário e a noção de comunidade ao mesmo tempo. Talvez soe exageradamente passional ou apaixonado delegar tudo isso a uma peça. Mas o mote sempre foi a conexão com a paixão. Repensar as próprias bases do que se pode com o teatro. Do que se deseja com o teatro. E movida por esses impulsos, passei 45 dias morando em um outro país, falando uma outra língua, vivendo integralmente para a criação. Tudo isso é por si só uma experiência de deslocamento.
O convite para integrar o processo de Trials and Passions veio a partir da parceria de longa data que tenho com a artista Janaina Leite. O Lift propôs esse match criativo entre a poética de Janaina e o trabalho que desenvolvemos juntas, e a instituição Clean Break. Uma proposta arriscada, não só pelas diferenças culturais e estéticas, ou o que se perde na tradução português-inglês e inglês-português, mas pela profunda diferença de como se lida com o trauma, a identidade, e a violência. É possível que diferenças sejam celebradas? É possível estabelecer um diálogo em que nenhuma perspectiva se impõe?
Realizamos um workshop em fevereiro do ano passado e foi nessa ocasião que conhecemos Athena Maria, Kim Teresa, Dominique Lavine, Sara Jane, Yvonne Wickham. E o processo seguiu entre pesquisa e criação, por mais de um ano, onde encontramos as possibilidades online, para que voltássemos no fevereiro seguinte para mais uma imersão criativa, e na próxima vinda a Londres: estreia. Estreamos como parte da programação do LIFT 2024.
Durante o processo online, em parceria e com a condução de Rachel Valentine, cada integrante do grupo desenvolveu o seu Scrapbook: com colagens, exercícios de escrita, pensamentos, imagens, etc. Me interesso muito por criar a partir desse limite da linguagem. Dessa não hierarquia entre o que é, e o que não é digno de dramaturgia. Ou o que ou quem define a dramaturgia. Me interesso por essa zona cinzenta, onde uma criatura mitológica e um pedaço do cabelo do seu irmão podem ter o mesmo vigor cênico. Um fragmento de Shakespeare, um Whatsapp da sua filha, ali, lado a lado. A força poética dos materiais está no arranjo que fazemos com eles.
Viver com essas mulheres, acompanhar suas epifanias e sabotagens, os momentos de alegria e de pânico, de coragem e de pavor, e sentir a doação que foi possível para cada uma durante a criação da peça é algo que me comove bastante. Cada uma habitou de maneira diferente as minhas noites de sono, as palavras que escrevo, o pensamento que invade a minha cabeça no momento mais inoportuno. E hoje eu sinto saudade delas. Essa palavra tão maravilhosamente intraduzível. E o tanto mais que foi impossível de traduzir, mas que certamente seguirá reverberando nos meus modos de criação. A experiência de criar e ser estrangeira em um país tem na mesma medida algo de extremamente vulnerável, e algo de extremamente renovador.
Fiquei pensando o tanto que uma identidade nacional é fundamentalmente composta por quem migra. Tem muito menos a ver com o que a pessoa leva consigo, e sim com os hábitos que se transformam e permanecem, informando a quem foi e a quem ficou, quem somos juntos.
Um dia entre ensaios, descansando em um parque, me deparo com um festival de latinidades. É obvio que tem algo lucrativo na exportação da tenda funk-reggaeton… Mas é curioso o encontro desses dois ritmos. É gostoso de dançar. E se todo mundo veio de algum lugar e compõe tão suntuosamente essa cidade doida, eu também devo ter vindo…
Londres é uma cidade em que 60% da população é imigrante. Tem mais imigrante do que inglês. (Não muito diferente de São Paulo se considerar a diversidade de estados do país) … Toda cidade muito grande tem uma coisa parecida. Mas a coisa vai se aprofundando.
E é essa quantidade de gente que vem aqui trabalhar o que se tem de mais precioso na cidade. Sem o imigrante sobra o quê? No que se sustenta a identidade de um povo? Se não na troca…
Quando visitei o British Museum fui confrontada com a sensação contraditória de admirar esses museus coloniais. Está conservada e catalogada toda a disputa por poder. E eu transito bem comportada com meu mapinha em mãos. Não tem nada que unifique o ser humano para além da guerra.
Mas aí eu encontrei uma sala sobre “A vida ordinária no antigo Egito”, os pertences de quem não era rei. Outra sala sobre a China. Império Etrusco. Mesopotâmia.
Infinito.
E o ser humano vem desde sei lá quando se enfeitando com adornos, enfeitando cerâmicas, enfeitando o próprio corpo… Desde de sei lá quando inventando utensílios pra comer. Inventando deuses, significados pra morte. Elaborando máscaras e guerras. E também os ordinários dias de paz.
Uma mãe amamentando um filho
Um buda que transforma desejo sexual em aprendizado espiritual
Um copo com água
Uma loja de vinil
Hieroglifos decifrados
E finalmente eu aqui. Tomando um café, ensaiando uma peça e portando esse alfabeto.
Quase como uma presença fantasma, penso em cada uma delas, em cada Unfamous Women. relembro dos refletores que me despertavam no final de cada apresentação. Elas na contra-luz, na contramão, e eu momentaneamente cegada, como quando olho diretamente para o sol.
Que as paixões e as comunidades, mesmo que temporárias, saibam do brilho que tem.